Morre Niéde Guidon ícone da arqueologia brasileira e guardiã da Serra da Capivara

por Antônio Luiz Moreira Bezerra publicado 04/06/2025 08h01, última modificação 04/06/2025 08h01
A cientista faleceu na madrugada desta quarta-feira, 4.

Niéde Guidon, falecida aos 92 anos nesta quarta-feira (4), deixa um legado monumental para a ciência brasileira e internacional. Arqueóloga franco-brasileira, ela foi uma das principais responsáveis por colocar o Brasil no centro das discussões sobre o povoamento das Américas, com descobertas revolucionárias na região do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí.

 

Por meio de pesquisas rigorosas, escavações pioneiras e uma dedicação inabalável à preservação cultural, Guidon redefiniu os limites do conhecimento sobre a pré-história sul-americana — e inspirou gerações de cientistas, educadores e defensores do patrimônio histórico.

 

Uma trajetória marcada pela ciência e pela resistência


Nascida em 12 de março de 1933, em Jaú (SP), filha de mãe brasileira e pai francês, Niéde Guidon formou-se em História Natural pela Universidade de São Paulo (USP) em 1959. Seu interesse pela arqueologia pré-histórica a levou à Universidade Paris-Sorbonne, onde concluiu especialização e doutorado com uma tese sobre as pinturas rupestres do Piauí — estado que se tornaria seu lar científico e espiritual por mais de meio século.

 

Foi em 1963, durante uma exposição em Minas Gerais, que ouviu pela primeira vez sobre as pinturas rupestres da Serra da Capivara. Planejava visitar a região no ano seguinte, mas o golpe militar de 1964 mudou o curso de sua vida: acusada injustamente, teve de deixar o Brasil e exilar-se na França. Lá, integrou o prestigiado Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e a Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais.

 

 

 

A revolução científica da Serra da Capivara

 

Imagem: Jorge Bastos

 

Em 1973, já como pesquisadora consagrada, voltou ao Brasil liderando uma missão arqueológica financiada pelo governo francês. Foi o início de uma jornada que duraria décadas. Com escavações sistemáticas na região de São Raimundo Nonato (PI), Niéde e sua equipe identificaram mais de 1.300 sítios arqueológicos, com pinturas rupestres, restos de fogueiras e ferramentas que desafiaram o consenso sobre a chegada do homem às Américas.

 

Enquanto a teoria dominante defende que os primeiros humanos teriam cruzado o Estreito de Bering há cerca de 15 mil anos, as descobertas na Serra da Capivara indicam ocupações muito mais antigas: pinturas com até 35 mil anos, fogueiras com 48 mil anos e ossadas humanas datadas de 15 mil anos atrás.

 

Essas evidências levantaram a hipótese de que o povoamento pode ter ocorrido não apenas por migração terrestre via Ásia, mas também por rotas atlânticas, vindas da África. Embora controversa, essa teoria provocou um necessário debate científico sobre as múltiplas possibilidades da ocupação do continente americano.

 

Parque Nacional da Serra da Capivara: ciência, cultura e preservação

 

Foto: Wikipédia


Com a fundação do Parque Nacional da Serra da Capivara, em 1979, graças à atuação incansável de Guidon, o Brasil passou a abrigar a maior concentração de sítios arqueológicos das Américas em uma área protegida de 130 mil hectares. O parque tornou-se Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO e referência global em estudos sobre a pré-história.

 

Além da pesquisa, Niéde foi incansável na luta pela conservação do parque, enfrentando a escassez de recursos e o abandono estatal. Criou a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), responsável por gerir o parque e implementar ações educativas, sociais e turísticas. Sua gestão integrou ciência, comunidade e desenvolvimento sustentável.

 

Despedida e legado eterno


Niéde Guidon se aposentou oficialmente em 2020, após contrair chikungunya, o que limitou sua mobilidade. Mesmo afastada do trabalho de campo, permaneceu como voz ativa na defesa do parque e da ciência brasileira até os últimos anos de vida.

 

Seu legado é incalculável: não apenas ajudou a recontar a história do povoamento das Américas, como também construiu um modelo de ciência comprometida com a transformação social e a valorização do patrimônio cultural.

 

"A ciência precisa ser feita onde está a necessidade. Não se faz ciência só nas capitais. É preciso olhar para os interiores, para os esquecidos." — Niéde Guidon

 

Edição: Redação Rádio Assembleia